ônibus, romance & revolução

a próxima revolução acontecerá dentro do 372.5 às 18h

Leonardo Moreira
6 min readMay 21, 2024

tinha tanta gente mas tanta gente que a única coisa que conseguia ser mais maciça eram os pensamentos. pensamentos que transbordavam os corredores, ganhavam as janelas, paisagens. tudo, tudo que você podia imaginar existia ali: boleto pra pagar, comida pra comprar; revisão do carro que tá parado na garagem; briga de família; constatações da vida de pobre; culpa atrás de culpa; sonhos atrás de sonhos. alguém lá do fundo grita que não adianta ficar parado que não cabe mais ninguém; o outro apoia o cobrador que afirma ter espaço sim: abre o corredor minha gente; outra mulher grita que só se começar empilhar gente em cima de gente; começa uma discussão e lados são tomados.

há quem defenda que o resto de espaço deva ser sacrificado em prol de mais passageiros; outros dizem que estão correndo perigo de vida ocupando os lugares das portas; uns afirmam que a moça indignada está impedindo o direito de ir e vir; o imperativo do cobrador agora ficou fixado em demonstrar como estava cansado e como aquela mulher era petulante; a mulher por sua vez conseguia mobilizar metade do ônibus a seu favor: estamos todos cansados meu senhor… muita gente trabalhou em pé aqui e em pé aqui estão; no meio dessa confusão toda, chico.

chico se revoltava em pensamentos como de praxe. queria chegar em casa e ligar pro jão. queria ligar naquele instante. queria entender porque gostava dele, mesmo sabendo que joão estaria do lado do cobrador e ele da mulher que nomearam de descompensadas alguns, “com toda razão” outros. queria saber também porque nunca se beijaram na boca. as reflexões deram voltas e mais voltas e a próxima revolução aconteceria dentro do 372.5 às 18h num trânsito quilométrico em nome da infraestrutura; em nome do povo. amém.

Ilustração: Pantera Megera

demorou um pouco mais, balançou um tanto outro. burburinhos começavam; burburinhos cessavam. a paisagem era escura e o odor diverso. adolescentes narravam troças, gritavam suas inseguranças em risadas escandalosas; os mais velhos olhavam desconexos o trajeto sem horizonte. havia quem atrevia ler um livro mas a regra era outra; eram telas pequenas; telas cheias de diversos objetos. a raiva passou, a tolerância ganhou espaço na revolta. ficar em pé era o menor dos problemas, a falta de espaço também. boletos, comida pra comprar, creche pra pagar… aos poucos tudo voltava ao normal e chico se rebelava: que raio o parta quem inventou esse normal.

tá aí o desenrolar da viagem: como podia? perguntava chico. onde encontravam forças? se revoltava chico. como podiam naturalizar tudo aquilo? aquele trânsito; aquela quantidade de pessoa amontoada. sem contar os desaforos e a vida que levavam fora daquele ônibus; daquele trajeto do destino. trabalhar em pé? o dia todo? esperar em pé? viajar em pé? dormir era uma conquista. sonhar era um luxo. nessa equação acordar era um pesadelo. mas tinha jão. ele era real até demais. os sonhos sempre foram melhores, é verdade. nisso morava o contraste daquela vida naquele coletivo; naquela cidade, naquele país. um pesadelo sem revolta. é no real que colhemos os frutos pra enformar os sonhos. e o real nem era tão real assim; o real era distópico, absurdo, quase uma piada mal contada. mas jão era tão real quanto absurdo. era como estar ali; cheio de raiva; cheio de potência; cheio de possibilidades de mudar, de revolução e… nada. nunca haviam se beijado e temia assim ser para o resto da vida.

a moça da discórdia acabava de descer quando o motorista fez uma zombação com sua cara e arrancou com grosseria o carro. isso mobilizou os mais diversos comentários, dentre eles o conhecidíssimo “isso aqui não é carro de boi não”. já uma menina uniformizada que voltava da escola comentava com seus colegas que era muito engraçado pobre fudido caçando confusão com outro pobre fudido. segundo ela ninguém tinha razão e ninguém fazia nada pra resolver o problema. a outra garota, com quem conversava, mascava chiclete ansiosa para colocar uma resposta perspicaz. rebateu dizendo que o problema havia, muito pelo contrário, se dividido. jão envia uma mensagem agradecendo a todos pelos presentes e considerações na pequena confraternização que fizeram na mesa do bar naquela noite. o cobrador comenta que essa geração é sem futuro e chico responde jão.

a resposta foi um “me diverti bastante” com anseios de mais conversa. toda interação tinha essa intenção. era impossível dizer qual seria o próximo lance se o desejo se realizasse; quais seriam os próximos passos; palavras. a verdade é que nada se concretizava. nada de esperado acontecia. nenhuma palavra de jão, nenhum emoji. nada tinha segundas intenções nem outras interpretações possíveis. menos aqueles 5 minutos antes do parabéns e aqueles outros 5 depois das palmas. mas a festa foi incompleta por esse mesmo motivo. a festa não foi plena. chico não acreditava que era possível refazer a história, destituir os minutos de suas verdades. aprendeu naquela noite que isso era mentira. era mais que possível viver sem um fato. sem nenhuma verdade sequer. aquele beijo havia sido uma ficção. aquele abraço embaraçoso, uma alucinação.

os pensamentos roubavam o espaço das ações naquele tumulto que colocava à prova a civilidade. a imaginação se encurtava e encontrava espaço na repetição de tudo que existe. o raciocínio se empobrecia de alacridade. o ônibus se esvaziava para noutro dia encher uma outra vez. o desconforto diminuía mas nunca cessava; era assim a vida. as vezes parecia que não cabia mais ninguém, mas sempre havia um espacinho a mais. talvez não fosse o suficiente como gostaria aquele cobrador. talvez nem mesmo devesse ser ocupado. e chico sabia que jão jamais cederia esse espaço.

no silêncio que se aplana onde não tem jovem nem discórdia nasce a dúvida de uma vida inteira. o ônibus estava quase vazio e a paisagem da noite não alimentava o espírito de esperança como fazia o dia. sem gritos nem lados pra tomar ficava difícil esconder de si a noite; a lua. o filme agora era um monólogo intenso onde chico calava a alma e o coração amava jão. voltava várias e várias vezes nas vésperas do parabéns. tudo fazia sentido. a amizade nunca tinha sido apenas uma amizade. nunca foi. nada justificaria o primeiro pedaço do bolo. nada podia desmentir a conclusão de chico ao se deliciar primeiro que todo mundo naquela noite. não tinha nada de aleatório como fez questão de afirmar jão. toda escolha implica uma renúncia. era do chico o primeiro pedaço. era dele. haveria de ser sempre dele e dessa verdade, desse fato com inúmeras testemunhas, acontecimento este do qual jamais abriria mão, ninguém ousaria refazer ou mesmo degenerar.

eram os detalhes. um parabéns emocionado; uma vida inteira de passado; aqueles olhares… memórias confusas sem laços nas certezas. os toques sem explicações nem convites. era a consideração. era um afeto bruto que se esculpia sem razão. não havia lógica; havia história; narrativa; pontos de vista e uma cabeça enfeitiçada de paixão. de platão. de ideias.

fantasias;

pretensões.

chico não faria a ligação naquela noite. talvez a probabilidade de jão ficar do lado da mulher ousada fosse alta. talvez chico tomasse o lado dos dois: da mulher e do cobrador. dos três. não era possível saber. talvez nem lados existissem; talvez as barreiras fossem uma ficção naquele caso. talvez fossem todos eles uma coisa só. um corpo cansado, impedido, cheio de antagonismo em vão. cheio de revolta com seus semelhantes a quem deveriam abraçar. e se a revolta e a revolução andavam de mãos dadas, seria inevitável esclarecer melhor as coisas. seria mais que necessário apontar as causas daquela viagem vertiginosa. do espaço insuficiente; do trabalho tirano com os pés, das alma inquietas, dos boletos infinitos, da vida de pobre, do beijo censurado e enfim, de todos os sonhos impossíveis.

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