viadage, trambicage, independência

tudo pulsava naquele coração afetado de bons sentimentos

Leonardo Moreira
5 min readJul 31, 2024

tudo pulsava naquele coração afetado comovido pela necessidade de desagradar. havia muito espaço para caber, muito afeto para retribuir. a fonte que o preenchia com toda sorte de bons sentimentos era incessante; havia uma qualidade ímpar. um contraponto insolúvel.

seus olhos inundavam a paisagem como um mar achocolatado que transborda uma ternura austera difícil de explicar. atraia muitas almas curiosas que desejavam desvendar os mistérios que jamais seriam decodificados com toda aquela distância caudalosa. muitas cabeças inquietas se perguntavam como era possível ter um elemento tão universal ligado a uma pulsão que nascia no fundo do ventre daqueles que lhe observava e comentava. mesmo as palavras, sem imagens modernas para comprovar seus modos tão sublimes assumiam uma aparência fidedigna. não era preciso vê-lo. era mais do que necessário imaginá-lo.

como um bom enigma, se contradizia ao final da tarde. a noite sempre foi o melhor momento para testar a virtude de alguém. os sonhos nunca deixam escapar as profundas vontades apartadas nos bons costumes. recuara e avançara com algum ímpeto ético. era humano; era gente; fazia morada em alguns trechos filosóficos e jamais desdenhara daquilo que não conquistava seu nobre coração. era necessário viver. sobretudo para ele que jamais cogitara apagar as chamas da paixão. a noite servia-lhe de combustível para abraçar a vontade que o dia jamais esgotaria. amava e odiava; abraçava e espremia; nunca poderia dizer que fora alguém insensível ou indiferente.

quem atrevia com seus olhos enxergar o jovem rapaz se perguntava sobre o futuro. como poderia pensar num futuro ao lado de tantas aventuras? e o pior, aventuras sutis; aventuras da noite. como poderia existir ao lado de uma face tão galante e intimidadora? como seria ser chamado todos os dias por uma voz que lhe impediria de recusar não importa qual coisa? era como escravizar a si mesmo. existia alguma coisa de sádico em permanecer, algo que seria à picaretas transformado num busto de mármore masoquista. o que era aquilo?

estamos falando aqui de um herói? um herói que cultuava eros; um alcebíades que seja? não posso afirmar. há de certa forma muita elevação no amor deste que ainda não possui um signo para reverenciá-lo; para chamar de nome. esse coração amava as formas e destrinchava seus conteúdos. transformava em arte tudo que tocava. há coisa mais cara que esta? desconheço. como exemplo basta citarmos álvaro.

sem encontrar troca que lhe sustentasse abraçou álvaro de jeito um tanto inesperado; sabia da reputação do rapaz. sabia que tinha a mão leve como uma pena. era o que lhe faltava: novas sensações. havia um tempo que não conseguira consertar um amor antigo que havia lhe corroído parte daquelas boas batidas no peito. preparado para mais uma metamorfose insinuou-se — vamos? inquieto álvaro não hesitou e logo demonstrou a admiração por aquele que era impossível de conhecer. mal esperava por aquele momento. não existia formalidades e muito menos um plano. era tudo um jogo de olhares que ao acaso se encontravam e ao destino se cumpriam. uma peleja entre a diligência branda e a displicência moral. existia um despenhadeiro naquelas retinas onde as águas opulentas costumam fazer um som que somente os amantes podiam escutar.

álvaro via e era visto.

encontraram-se numa esquina que dava para o centro da cidade. os corações batucavam e o céu já havia se feito noite quando o primeiro disparo fora ouvido.

— corre álvaro, disse

foi só nesse instante que a calçada fora percebida. que as texturas saltaram aos olhos. concreto; poeira; o ar gelado que cortava a dança das pernas trêmulas.

os rostos se encontraram e os olhos se entreolhavam para constatar aquilo que não tem nome e não pode ter.

se fizeram satisfeitos.

muitas cabeças foram postas para fora das janelas; não havia anonimato e muito menos reservas. era tudo feito e efeito daquela apática classe média. um roubo, gritou um senhor subindo a rua com uma bengala ao ar. o tempo se gelificava e os segundos se alongavam. quando se depararam com uma rua sem saída álvaro pegou o outro pela mão e puxou-o para escalarem um muro baixo. o coração estava farto e transbordava aquela sensação-fábula. as mãos apontavam do alto e indicavam a direção aos policias. álvaro começou a rir quando seu amigo começara a colocar um colar de esmeralda que estava guardado em um dos bolsos da jaqueta. álvaro tropeça, ri, e percebe que numa rua próxima estava acontecendo um evento semanal; uma feira a céu aberto. muita gente, muito tomate, muita coisa que quebra o galho.

álvaro comprou dois pastelões de presunto e levou o amigo a risadas longas; gargalhadas questionadoras de uma frieza de valores internos de decência. os dois balançaram a cabeça fazendo um sinal para esquerda e outro para direita afirmando com um sorriso irônico e comedido a cumplicidade.

— você é o cara disse, álvaro

o outro sem retirar o sorriso do rosto balançou a cabeça timidamente numa negativa.

— escuta — disse o amigo — agora a gente já aprendeu, num é?

álvaro entendia mas quis se fazer de desentendido

—aprendeu o quê?

— para com isso —disse num tom sarcástico — você sabe do que eu to falando

álvaro acendeu um cigarro, olhou pro céu, expulsou a fumaça dos pulmões

— e precisa ser assim?

deu uma mordida no pastel, uma bebericada no caldo de cana que o amigo comprara e logo em seguida mais um trago no cigarro. nesse momento não foram os tiros dos policiais que atravessaram álvaro, mas os olhares de todos ali presentes.

— nós temos pouco tempo —disse álvaro

— não se preocupa, essa não é a última vez

um frio descomedido passara habitar o extremo da espinha dorsal de ambos. o céu ganhara uma cor duvidosa. os movimentos eram exatamente como os dois haviam previstos na música implícita do páthos. era isso mesmo. o cachorro caramelo levantou as orelhas, os pássaros impulsionaram uma nova nota e as mãos alçando o pescoço do amigo eram as de álvaro. um sussurro veio primeiro e lhe contava o que já se sabia. tudo acabaria exatamente como fora dito. se orgulharam da harmonia que compuseram e exaltaram a canção da fatalidade.

antes dos policiais atirarem, um passo para frente fora dado e um beijo passara a existir. a primeira bala passara longe e acertara um dos pássaros que cantava. a segunda, desconcertada pela cena, quase não acertara o alvo.

— viva a independência — disse álvaro caído por cima de dois cocos verdes vazios e que se abastecia do sangue enamorado que jorrava de seu corpo. a cor pálida lembrava um busto grego picaretado. seu amante fugira; sabia que seria assim. não morreria ali em meio ao lixo da feira, seria triste demais. enquanto era resgatado pensava como cada segundo havia valido a pena. a pena que cumpriria por todos os crimes que havia cometido.

— viva a independência, viva o amor — suspirara.

--

--