os ventiladores cantavam o inferno
enquanto a tv cantava o culto
os ventiladores cantavam o inferno enquanto a tv cantava o culto. o espaço cabia mesas, vitrines, freezers e mais um bocado de gente. as bocas falavam cada uma de uma vida. os corpos mexiam numa dança sustentada pelo precário. moscas voavam, o bebê chorava, glândulas suavam. de fora, quem via pensava “nunca que eu entro aí”. quem estava lá dentro um dia havia pensado o mesmo.
se você virar uma formiguinha e passear naquelas frestas vai acabar percebendo que nada é muito diferente do que vai ser dito aqui.
para começar é necessário ir mais além. caminhar por horas e horas até chegar à cozinha. lá nenhuma visão a título de curiosidade chegou a espreitar. no entanto, haviam rumores. adianto logo que nem todos eram mentira, mas sim um tanto cheios de fantasias e ânsias. minto. todos os rumores são verdades. como diria o narrador de saramago, ninguém estava lá quando o mundo foi criado e mesmo assim todos sabiam e sabem como aconteceu. nunca ninguém usou feto para fazer coxinha. mas talvez seja por isso que pão de queijo recheado esteja tão gostoso. e não, a carne do pão da vovó não era de cavalo nem do marido falecido de alguma vó lurdes. pereirinha o nome dele. mas a textura não era de boi nem de galinha. em alguns minutos compreendi que seria necessário muito tempo para iniciar os curiosos na seita do pão; comecemos por não saber qual tipo de empreendimento se tratava esse comércio. tinha pão mas faltava manteiga. não havia leite mas se vendia bolo de nata. não era padaria nem mercado. na placa pendurada ao lado de fora comerciava-se um pão comum com olhos amarelos e alegres a espreitar o café antipático.
como uma boa formiguinha fiz amizades. aprendi logo avisar a todas o caminho da felicidade. existia toda uma complexidade naquelas patinhas, antenas e jeito de distribuir recursos. eu não estava interessado; então fui me ter em questões de humanidade, racionalidade e afins. algumas dessas coisas que não tem sido o suficiente pra salvar o planeta.
não se sabe muito bem sobre quem fazia toda aquela magia de delícias acontecer. não é preciso dizer que só fui aprender o nome do joel, que por sinal se mostrou um um salgadeiro excelente, quando parei de ser gente.
o anderson, rapaz cuja função não me ficou claro, justificava o esforço sobre-humano que exercia numa frase que sua mãe e o resto do mundo não hesitavam em lhe dizer: não estudou porque não quis. a ângela, que trabalhava na faxina, era também quem enrolava a massa. ela também atendia o balcão e cuidava do caixa.
nesses vinte minutos entendi que o joel, o anderson e a ângela tinham muitas coisas em comum. o meu erro foi ter saído de lá sem ter as palavras para descrevê-los para além do ofício. pra fazer isso nem era necessário ser intruso no rejunte… bastava ser minha mãe; dona chica ou o zé da fezinha. vale vos contar que a imprensa nasceu de forma semelhante. era o tal do boca a boca. a prima do joel acabou de ser aprovada no vestibular; era a primeira geração da família a entrar na universidade. pedagogia. se por um lado eu achava isso um máximo, o zé comentava com dona chica que profissão mesmo era ser médico ou advogado. nada novo sob esse horizonte. novo mesmo era o irmão da minha mãe que terminara engenharia e gastava seu diploma num aplicativo de transporte alternativo. e se dona chica calada estava e calada ficava é porque sustentava com afinco o edifício de suas próprias decisões: era mais próxima da função de batedora de massa que qualquer um ali.
a filha da ângela chorava coxinha a tarde inteira. motivo não faltava: a lufada de ar quente soprada pelo ventilador junto ao colo onipresente da mãe era insuportável. os rostos diversos e impacientes a espreitar; a pedir, reclamar; notícias de deslizamento; assalto; tudo isso recheava aquela rechonchudinha religiosa pra vida. criança afoita. berrava; pelejava; motivo dos olhares e comentários inaudíveis.
— me vê 5 enroladinhos de salsicha.
— só isso mesmo?
—me vê o restante de bolinha de queijo.
— nossa você viu o que tá acontecendo no sul?
— vi menina — isso é por causa do show da Madonna que veio aqui trazer os demônio dela. agora olha só, tudo inundado — a gente vai pensando que Deus não percebe as coisas …tá aí.
— crédito ou débito?
— dinheiro. aqui tava bom de colocar um ar condicionado, esses ventiladores não resfriam nada
— os ventiladores são pra espantar as moscas
— sua menina já tá tão grande né? — disse abrindo um sorriso largo – daqui a pouco vai pra escola pra te dar sossego.
— nossa não vejo a hora dela começar ajudar lá em casa
acabou aqui minha viagem despretensiosa. despretensiosa pra quem? não me ficou claro o motivo. quis ver e alguma coisa vi.
no fundo cheguei a conclusão que não é possível conhecer ninguém. francamente saí de lá entendendo melhor sobre eu mesmo. nada do que foi descrito é verdade. nada do que foi narrado tem a fidedignidade daquele que conheceu um outro. naquelas pessoas não pude me encontrar uma única só vez. talvez aprendi pelo que não fui, pelo que não sou e jamais serei. na verdade sou tudo isso e mais um pouco. teimo em reconhecer. talvez eu tenha prescindido do meu egoísmo no discurso, na intenção. pode ser que a vontade de entender tenha mostrado o quanto não sei me familiarizar; reconhecer. do quanto insisto em não saber. talvez o anderson seja eu; talvez o joel seja outro. onde nasce o desconhecido? fui e vi. fui e ouvi. estive. não conheço. faltou algo.
lembro-me de quando a pequenina derramava lágrimas e barulho. lembro dos olhos de quem entrava embebidos na reprovação. havia no fundo daqueles rostos imperturbáveis uma pergunta que ninguém ousava fazer. descaso com a assepsia? com a transparência? que mãe era aquela afinal de contas (por que sempre a mãe?)? sem resposta ficaram. também não fiz as perguntas certas e muito menos sei qual resposta buscava encontrar. não os conheci e menosprezei-os no intento.
produzi o outro.
investiam o tempo e a vida da cozinha pro balcão; do balcão às mesas; somos nossos trabalhos? salgadeiro? quituteiro? e depois? como ver se sempre me encontro na paisagem? ou melhor, se me retiro desta? como fazer isso? fui formiga. talvez um “ólá tudo joia?’’ fosse suficiente. mas e em seguida? me falta um pedaço.
compactuei com a barbárie.
não posso continuar sem entender. agora estou dentro. vi alguma coisa e interroguei-me. deveríamos aprender a sacudir as evidências; materializar a indignação. me vi onde pensei nunca estar um dia. não consegui sair.
me pediram para ver o outro e falhei.
ver pra quê?
pra evidenciar a mobília? pra trazer à luz da razão aquilo que outra boca melhor elucidaria? fui exaltado e exagerado por eu mesmo. tudo continua a mesma coisa e não fiz nada pra mudar. não articulei um plano e muito menos fiz um endereçamento coerente. não convoquei nem fui convocado.
de repente argumentar a mobília seja um começo; uma guerra estética.
sempre há de ser.
não entendi que ânsia de mudança motivou minha metamorfose, mas é inquestionável que ainda paira um erro na atmosfera daquele lugar.
– tá aqui seu troco.
– obrigada
– volte sempre.