glóbulos secantes

linha anti poeticamente posta

4 min readFeb 19, 2025

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O céu azul e os pulsos abaixo fluíam pelo ar em imagem hesitante. As palavras traduziam com dificuldade porque eram parônimas. Não podiam ir longe. Iam a algum lugar, no entanto. Prédios em linhas impossíveis e ruas com pedestres autômatos. Era bonito.

Não foi eu quem disse isso.

Era impossível,

promessa de sentido.

E subindo naquela paisagem, os pássaros sorriam com inúmeros gestos. O cheiro invadia o coração e não era amor. E não é possível dizer de quem era o peito. De quem era o feito.

Eu vi.

Igual a esses parágrafos, era breve e texto. Se esmiuçava numa ponta e quebrava noutra. E o limite é o quanto essa palavra suporta dentro de si. E depois aparece uma outra pra acalmar as ruas com pontas de linhas entrelaçadas em si. Barbantes coloridos. Mas não tão simples assim. Era tudo na cor das cordas banhadas em guache. Roxo azulado na córnea. Papel celofane nostálgico pendurado no teto fazendo a graça da criançada.

Quem foi que disse isso?

E então a paisagem se formava. Morava na linha do trem. Sempre voltava para aquele lugar. Lugar sem nome porque sempre novo, sempre férreo. Nada explicava o efeito cinzento do metal e os bancos verdes e azuis. Corrimão alaranjado que levava ao entra e sai. Efeito de supermercado na mão adolescente. Nada desvenda a imagem daquelas garrafas vazias e o afeto efeito. E o céu fluía tarde em pintura hesitante, em tempo incerto.

Não é efeito de entre parágrafos, prometo.

E desse desprendimento, nos pigmentos floresciam a técnica. E antes da representação, a cidade era outra. Tecendo a forma de olhar, o arranha-céu nunca ganhou a galeria. E por entre os quarteirões, uma rima enfadada. Antes da cidade, a representação era outra. E a raiva, e o pai, cachorro e tambor. Também o calor e as cartas de despedidas. Então se acabava em música e o tempo se acertava. Atravessava. E fazia dançar. Olhos de sol. Não literais, mas ardentes iguais. E um passo era dado em asfalto do antigo regime. E os sonhos mudavam de cor. Nenhuma nova. E a sede mudava de casa. E o trem passava. O rio arroxeava-se. E nada disso nunca perdeu a graça.

Disseca. Contempla. Glóbulos secantes. Hesitação e êxito em barrar. Não era uma performance até ser consciente, e depois disso morreu e nasceu inúmeras vezes. A saudade que fica é eterna. E então se pergunta antes de dormir como pode todas as manhãs serem iguais. Mesmice que completa o ciclo interminável do balançar da mata verde e das onças que rugem incessantemente. É mato e onça.

Na selva perdi-me nas pegadas ao meio dia. A volta para casa era instinto e a casa era o mundo. Me dissecaram por inteiro e não pude mais molecar meu passo manso. Antes de rugir, pensava. Tudo que era fruta me aborrecia e era difícil aprender a me satisfazer com o suficiente. Patas enormes, um pelo macio. Uma sinfonia nos céus de azul e branco reflexivos. Deitei-me no tronco da liberdade que esgotava as possibilidades de ser.

Onça faz outra onça deixar de ser onça?

Afastei-me de tudo que era. É impensável ser cidade. É impensável longas patas e jeito tão último de ser em concreto batido e tijolos floreados. Não era ousadia nem ambição. Era antes de tudo anti histórico. E fermentava impossibilidade, porque havia compasso que não fazia seu corpo dançar e sons que não articulavam ação alguma. Era de um perfume feroz e só podia se lambuzar de uma solidão conformada.

Quando o solo fertilizado tremia em seus sentidos, andava descalço da alma de fera e copulava com a atmosfera úmida e terrosa. Era vida sem memória, um estado de fricção que em si não se fazia justificar. E então de tempos em tempos deixava de ser porque essa era a graça. Havia de ter humor e um pouco de riso, mas onça não ri e os dentes beiravam o vento como os olhos que buscam o que agarrar e alcança o que nada diz. Não era inútil, mas indiferente. E eram coisas diferentes.

Mas sabia que era.

Em outros pares de olhos cabiam uma guerra inteiriça onde a simbiose se transformaria em única grande afetuosa coisa. Era explícito e não real. Então abrandava o animalesco pra caber o respiro de um espírito preso à necessidade mortal de ser e estar. Desopilava contando os segundos para o próximo nascer do sol que alimentava os passos guiados pela ínfima luz incandescente de uma herança da memória, onde o indizível se costura com o inacreditável.

Corre, corre, corre. Linha feita de finura vital com presas que justificam o desafio. Linha de além quadro. Linha anti poeticamente posta no ponto que marca o fim de um modo de ver.

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Leonardo Moreira
Leonardo Moreira

Written by Leonardo Moreira

Língua & literatura na UnB | Por um longo instante esqueci o meu nome. http://instagram.com/a214b

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