Esta casa não está à venda
Quem tem Deus, tem tudo.
Ela se levanta cedo, abre o portão de papel e entra na rua como se fosse uma ficção. Todos entraram num consenso, “Ela” que não tem nome nem idade não fazia parte daquele acordo.
Caminhando rumo às incertezas de uma paisagem certa e familiar, a vida é o bem mais precioso. Os dois meninos pequenos que ficaram em casa, também. Todos são mais. Todos são alguma coisa. Tudo aquilo que é humano certamente esvaía daquele corpo. Era colocada e se colocava no devido lugar: era um bicho. Uma piranha; seu falecido marido, um cabra. As crianças, burrinhos. preás. A civilização aceitava-os até certo ponto, pois como foi dito, não faziam parte do acordo.
Se tudo isso é verdade, a realidade que era inegável, mas de certa forma maleável, justificava sua existência e precisava justificar. Era o exemplo do que não se deveria ser. Era o motivo pelo qual existia o rico, o bom, o desejável. Afinal de contas, quem desejaria ser “Ela”?
Quando “Ela” colocava os pés nas calçadas sentia-se em seu segundo lar. No sol quente das tardes que amarga e prova a esperança, estava lá, ela. Andava, vendia alguns doces, mas qual era a justificativa para ainda estar viva? Quais eram os seus pensamentos que poucas pessoas, contadas nos dedos magros e pontudos, se dispuseram a ouvir? Ouvir para depois virarem-lhes as costas e ignorarem-lhe até onde convir?
Uma vez um adolescente passava pela rua e trazia dentro de si uma semente ainda por germinar. As dúvidas haviam sido postas em uma aula que não se lembrava muito bem. Era uma pergunta da qual a resposta havia de ser elaborada durante todo o ano letivo. Se esquecera da pergunta mas a dúvida não havia saído daquela cena no semáforo enquanto seu pai dirigia: como podia seu próprio pai, seu herói, ignorar tamanha injustiça? Essa pergunta não estava lá sintaticamente posta; clara. Não era uma pergunta com palavras diretas. Era uma inquirição do coração. Uma investigação da alma. Uma interrogação que muitas vezes um dia esteve dentro de muita gente e que virou uma certeza silenciosa.
O sinal esverdeou; a dúvida foi respondida antes de qualquer pergunta: uma mulher nova dessas… podia muito bem estar trabalhando… disse o pai do garoto. O menino concordou hesitante. Havia naquelas palavras um grau de verdade; uma verdade tirada daquela pergunta que nunca foi respondida. Uma certeza que pressupunha um punhado de impotência. Resolveram a questão rapidamente. Resolveram a questão de si mesmos. Seguiram. “Ela” era o contraste. “Ela” era simplesmente uma metáfora. “Ela” era uma vitrine da desgraça. “Ela” não merecia reflexão elevada. “Ela” era um assunto morto, encerrado.
“Ela” caminhava, era o que fazia. “Ela” sequer pedia, mas era pedinte. “Ela” tinha casa mas era moradora de rua. “Ela” tinha vontade mas não tinha um sonho. Não tinha corpo, possibilidades, era feita para existir. Talvez nunca nem tenha existido; mas estava lá. Não haveria roupas boas; não haveria cor branca; não haveria gratidão. “Ela” era tudo aquilo que jamais gostaríamos de ser, dizem. “Ela” era a negação de uma pergunta. De uma resposta que aproximaria o longe para o perto. Havia muito o que se perder. Temer. Nada estava eternamente ganho. “Ela” era esse lembrete. “Ela” era uma verdade avizinhada. Um buraco na sucessão do esperado. Do conforto. Era um recado, uma constatação. Um medo indizível: um tropeço, uma semelhança, uma realidade não muito distante.
No fim ninguém sabe exatamente sobre quem se fala. Como vive. Como sonha. Sabe-se que ela estava lá ontem, na paisagem, empurrando seu carrinho de supermercado com itens que um dia estiveram na prateleira. Que um dia foram novos e que fizeram alguém feliz. Trajava roupas que um dia esconderam corpos mais desejados que o dela. Corpos com uma história diferente. Roupas que encontraram um destino “nobre”. Roupas que vestiam um corpo abandonado. Vestimentas como “Ela”. Ultrapassada, velha e indesejada. Sempre havia sido assim: fora-lhe negada a juventude, o desejo e todas as vezes, a modernidade.
Se é verdade que muitos renunciavam a raiva imediata, os desejos mais perturbadores, a ganância mais petulante e tudo isso em nome de uma civilização, “Ela” tinha uma única certeza: sua barbaridade fora projetada. Não era sequer humana. Não elaborava bem as palavras para dar conta da sua revolta. Não entendia sua angústia. Sentia-as. Fora afastada de toda e qualquer vontade profunda: queria ser professora e ter uma casa confortável. Não teve livros, não houve escola suficiente. Não recebeu a educação dita civilizadora. Não fazia parte do acordo. Sentia-se humana, mas fora ensinada a ver-se como bicho: uma piranha vagabunda. Botava duas ou três gotas de álcool na boca: uma maldita arruaceira. Criava dois filhos sem o pai: este havia morrido e melhor assim era, diziam: era um trambiqueiro sem futuro. Era sua imagem. Era sua verdade. Sua realidade. Seu destino. Nada mais, nada menos que isso: fora ensinada amar a morte e mesmo assim estava ali, provando a sobrevivência naquela paisagem ríspida, insensível, cheias de anúncio e sonhos que nunca lhe confiaram a realizar. Não era uma vítima, não se sentia uma vítima, era vencedora. Era vendedora de balas. Vendia pipoca, cigarro picado. Tinha que alimentar os pequenos. Tinha de comer. Tinha de existir. Tinha vida naquele corpo. Uma vida a que aprendera sozinha viver. Um sujeito advindo do indesejável. Uma existência sublime. Surreal. Uma experiência que incomodava, uma obra de arte produzida com o dinheiro de todos, exceto o dela. Uma galeria de arte a céu aberto. Uma ficção cujo medo está nos olhos de quem assiste e de onde a coragem recai sobre a pobre heroína. Era necessário assim ser. Mais necessário para alguns que outros. E se necessário não fosse, assim era. Assim tem sido.
Sem idade, nome e nobres vontades, deixo para que um dia seja ela mesma sua apresentação. Que possa, como pode hoje, enunciar aos outros, seu nome. Sua história. Suas felicidades incompreensíveis. A verdade que sempre foge das telas dos jornais, dos livros escritos em seu nome. Que um dia possa inventar nomes, adjetivos e substantivos na convenção que lhe fora um dia negada, dizendo-nos aquilo que ninguém jamais poderia contar de outro jeito. Que viva e possa viver, pois há coisas que palavra nenhuma pode cercear e que, assim sendo, é nas beiradas daquilo que não mente o sentimento que uma existência não desejada pode enfim haver. Uma existência não desejada começa quando a vontade do outro pode falar mais forte. “Ela” está viva e criou seus próprios termos. Inventou uma vida. Seu próprio acordo. E essas coisas ninguém há de tirar dela.
O que pensavam as crianças alheias? Já não importava mais. Nem importava os adultos e nem mesmo os mais senhores. Tinha seus objetivos e motivos. Suas forças que nunca foram traduzidas nem assemelhadas àquilo que de fato falava-lhe o coração. Eram as palavras alheias, não as dela. Era objeto de ficção mas vivia, de verdade. Carne, osso, espírito e tudo que um humano tem direto. Sabia que vivia. Sabia que estava vivendo. Sentia que acontecia. Muito era feito mas era como se não houvesse feito nada. E assim, na incompreensão, vingou família. A família de “Ela”. A família “Deles”. Já foi “Aquela”; Já foram “Aqueles”; “Aquilo”. Uma coisa semelhante à não coisa. Um absurdo.
Nunca ninguém havia contado sua felicidade. Era incompreensível brotar afeto bom naquele peito. Naquela casa. Naquilo. Diziam… Disseram muita coisa, menos aquilo que “Ela” desejava um dia contar. Pensava consigo que era óbvio ser a estátua do crime, de tudo que era feio, pois ela mesma adquiria a capacidade de enxergar a si como os outros a viam. Não era a imagem mais bela, mas sabia que tinha abismos de imprecisões com a qual se divertia à beça. Muitas vezes se aproveitara disso. Muitas vezes tirava sarro de um metido qualquer querendo dizer quem ela era. De um narrador safado metido a cronista tentando coisificar sua ficção. Era malandra. Era porreta. Era tudo, menos aquilo que diziam que era. Era inacessível. Era coesa como todas as gramáticas das vontades. Um enigma esquecido. Uma pretensiosa interpretação. Uma insatisfeita conclusão. Era por fim, tudo aquilo que não teve a dignidade de mostrar ser.