Criança Bandida

Por que roubei meu coleguinha?

Leonardo Moreira
6 min readApr 15, 2024

Eu acordei cedinho pra me arrumar pra ir pro colégio e logo de cara senti falta do meu videogame… Quando fui até a janela que dava para a garagem a porta estava aberta e o carro havia sumido, também. Poxa vida, haviam roubado minha casa… De novo. Não fiquei com raiva como da primeira vez, quando era mais criança. É que as questões ficaram mais difíceis de serem resolvidas, sabe? Parei de pensar em segurança pública. Pelo menos não como gostaria o jornal que se indignou em mostrar nossa realidade naquela manhã. Buscaram as imagens em câmeras de segurança da rua e das casas ao lado, mas tudo que havia eram homens mascarados e um destino oculto. Meus pais fizeram uma algazarra, praguejavam a morte, e repetiam entre si, com muita frequência, a frase: como pode? A terceira vez… Enquanto isso eu comia rosquinha smile.

imagem: Leonardo Moreira

O canal de televisão que também era uma igreja nos intervalos entre um programa e outro não se demorava em mostrar como faltava policiamento. Eu lembro que costumava ficar muito entretido com as desgraças daquele jornal. Aumentava consideravelmente meu medo e a aventura de estar nas ruas da cidade. Não podíamos quase nada: brincar na praça, correr na rua depois da aula, soltar pipa… Sempre fui muito cuidado pelos meus pais. Apesar de tudo isso, para a frustração silenciosa deles, encontrei naquela notícia daquela fatídica manhã, um furo: a residência não havia sido invadida… eu deixei o portão aberto depois de sair para passear com o cachorro. A porta da frente também ficou destrancada, porque quando Pepito entrou em casa, logo se soltou da coleira e eu fui correndo impedir que ele subisse no sofá com as patas sujas. Ou seja, deixei a porta aberta. Havia me esquecido. Mas agora vejo que foi um convite…

Foi um convite porque eu mesmo, quando mais novo, lembro de ter pegado dinheiro e jujubas na bolsa de uma tia. E isso só foi possível porque pude ver com muita nitidez aquele zíper aberto e uma vontade maior que qualquer ameaça de surra no mundo. Era um convite. Eu sabia que era errado. Como pode as vezes a gente saber o que deveria ser feito (e nesse caso o que não deveria ser feito) e mesmo assim fazermos isso? Então… Eu sabia que sentimento era aquele que o ladrãozinho havia sentido. E eu posso dizer que meu pai também sabia. Meu pai sabia por que ele também já foi ladrão. Uma vez no supermercado ele abriu uma latinha de cerveja, tomou, e “guardou” atrás dos salgadinhos. Fiquei impressionado com aquilo tudo… Era possível beber de graça e, portanto, comer, também. Fiquei imaginando por dias abrir um biscoito de menta, um suco do bob esponja; não cheguei a consumir nada, infelizmente, porque sempre me impediam antes da hora. Minha mãe também era bandida. Lembro nitidamente o dia em que ela encomendou um vestido numa costureira e nunca mais voltou lá pra pagar a dívida. Isso pode parecer qualquer coisa… Mas o lote onde moramos é uma invasão. Disseram que merecíamos porque éramos pobres e que outras pessoas tomariam o lugar de qualquer jeito. Depois achei estranho porque tínhamos três casas sem documentação e outras duas fora daquele terreno baldio. A gente tinha um apartamento no centro da cidade, também.

Naquela manhã foram indignados registrar o boletim de ocorrência. Havia um burburinho na rua. Todo mundo reclamando da insegurança. Mas tinha uma coisa que eu não conseguia parar de pensar.

Um dia um professor me acusou de ter escondido um brinquedo de um colega. De fato, eu havia escondido; escondi dentro do cesto de lixo do banheiro das meninas. Era um brinquedo que eu queria muito. Hoje vejo que fui meio bobo porque era um brinquedo relativamente simples. Eu mesmo podia ter comprado se meus pais tivessem me dado uns trocados naquele tempo. O negócio não é o brinquedo ser simples ou não; o negócio é que eu sabia o que eu tinha feito. Sabia que no fundo eu escondi aquilo porque eu não conseguia lidar com o fato de existir um brinquedo perfeito para uma criança perfeita. Escondi porque tudo que eu tinha naquela hora era um lugar muito hostil dentro de mim. Um lugar inexplicável. E me diverti muito com isso. Com o desespero dele. De ir embora pra casa sem devolver o brinquedo. Bem, é verdade que no fim de tudo não pude fruir de quase nada. A acusação não passou disso e eu não quis mais brincar com o brinquedo encantado. Não tinha mais a mesma graça. Não tinha mais um feitiço.

Depois do furto que cometi, a escola convocou uma reunião com todos os alunos. Lembro que no quadro escreveram uma pergunta que ficou sem ser respondida: por que alguém roubaria (deveriam ter escrito “furtariam”) um coleguinha?

Talvez o ladrão de carros e videogames não tenha tido brinquedos o suficiente. Meu pai conta como meu avô era rígido. Que por isso sua infância havia sido de trabalho logo cedo e que escutava com frequência que brincadeiras era pra crianças molengas. Talvez por isso meu pai seja ladrão também. O negócio é que minha escolinha inventou uma infância pra mim. Lá escorreguei no escorregador, brinquei com peão, xadrez e amarelinha. Se o ladrão for do meu tipo, ele vai ficar sentindo coisas irritantes depois de uns três dias… Uns olhares esquisitos… Sabe? Ninguém sabia de fato que eu tinha furtado aquele brinquedo… Todas as crianças foram averiguadas e acusadas na mesma intensidade. Mesmo assim… Ali comigo, naquela brecha da verdade, eu mesmo era incapaz de curar a fissura do meu ato. É certo que depois vieram as jujubas furtadas, o dinheiro empalmado na bolsa da titia, a vontade de sempre querer um suco do bob esponja de graça… Coisas assim. Porém os olhares me impediam. Aqueles de fora e aqueles de dentro.

Lá atrás eu disse que havia um furo nessa história e que eu mesmo havia causado esse vazamento da veracidade narrada nos jornais. No entanto não posso deixar de fazer a pergunta que senti no dever de responder: por que o ladrão roubaria o carro e o videogame de uma família do bem? Veja que tenho dificuldades de responder. É que meus pais disseram que somos uma família do bem. No entanto somos ladrões também. O ladrão que roubou nossa casa é malvado segundo as ideias da minha mãe. Eu não consegui entender. Ficou sem resposta como no dia da escolinha. Será que o ladrão nasceu malvado e minha família nasceu boazinha e por isso a ação de cada um não importa? É que eu ouvi dizer que a índole é de cada um… Onde é produzida a índole? Já vem da barriga da mãe? Isso me pareceu estranho… Sempre pareceu… Mas de qualquer forma: que azar deve ser nascer malvado. Gente boa rouba de outro jeito e talvez por isso eu não tenha encontrado a resposta para a pergunta da minha professora, pois naquela indagação havia uma pergunta pra gente do mal.

Essa é uma questão muito mal resolvida porque na minha escola quase ninguém tinha índole ruim. Será que Deus produz poucas pessoas assim? Acho que não… Roubaram minha casa três vezes, não é mesmo? Bom… Talvez exista mesmo a escola do crime que meu pai viu na televisão: fica na favela. Se for verdade, disseram que aqui tem a maior favela do brasil. E advinha só: muitos desses então favelados são filhos ou parentes de gente que construíram a capital do país. Isso não faz sentido… Como pode quem construiu esse monumento de cidade morar tão mal? Será se todo mundo ali nasceu de índole ruim e por isso moram na favela e frequentam a escola do crime? São tantas perguntas. Acho que é por isso que o jornal se poupou de questões como essa. É melhor ser direto logo: matar todo mundo da favela. Mas não vai adiantar porque deus ou o diabo vai continuar produzindo gente do crime. Será se encontrei as respostas certas? Agora eu me lembro de um primo meu que foi preso por aplicar um golpe numa velhinha. Perguntaram pra ele o motivo dele ter feito aquilo e pareciam que todos a sua volta tinha a resposta, menos ele. Talvez nossa família não seja tão sagrada assim.

Apaga tudo o que eu disse. Acho que não estamos fazendo a pergunta certa… Qual pergunta deveria ser feita? Como vocês me explicariam tudo isso? Uma vez perguntei pra uma professora e ela riu muito da minha “ingenuidade”. Disse que nem deus nem o diabo. Como era possível isso? Disse que isso não era coisa de barriga de mãe. Oras, era o quê, então? De onde ela tirou tantas certezas pra afirmar coisas assim? Confesso que fiquei ainda mais perplexo com tudo isso ao perceber que coisas inquestionáveis são questionáveis. Talvez no quarto roubo eu consiga responder… Até lá terei tempo para pensar e quem sabe, fazer alguma coisa… Como você poderia me ajudar?

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